Muitas pessoas nos têm perguntado quando, afinal, termina o tempo da Quaresma: é no Domingo de Ramos, na Quinta-feira Santa ou no Sábado Santo?
Na busca por respostas, o quadro com que nos deparamos é o seguinte.
As Normas Universais do Ano Litúrgico e o Novo Calendário Romano Geral, promulgadas pelo Papa Paulo VI, dizem expressamente: “O tempo da Quaresma vai de Quarta-feira de Cinzas até a Missa na Ceia do Senhor, exclusive” (n. 28). Isso significa que, na atual forma do rito romano, a Quaresma se encerra na Quinta-feira Santa, antes da Missa vespertina de lava-pés e da instituição da Eucaristia.
A mesma definição é confirmada pela Carta Circular Paschalis Sollemnitatis (1988), da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, na qual se lê:
Na Semana Santa a Igreja celebra os mistérios da salvação, levados a cumprimento por Cristo nos últimos dias da sua vida, a começar pelo seu ingresso messiânico em Jerusalém. O tempo quaresmal continua até à Quinta-feira Santa. A partir da Missa vespertina “in Coena Domini” inicia-se o Tríduo Pascal, que abrange a Sexta-feira Santa “da Paixão do Senhor” e o Sábado Santo, e tem o seu centro na Vigília Pascal, concluindo-se com as Vésperas do Domingo da Ressurreição (n. 27).
Para os fiéis que seguem, no entanto, a forma extraordinária do rito romano, a resposta é um pouco diferente, segundo o que se lê nas Rubricas Gerais do Missal antigo: “O tempo da Quaresma vai das Matinas da Quarta-feira de Cinzas até a Missa da Vigília Pascal, exclusive” (n. 74). Isso significa que, para quem reza com o Missal de S. Pio V, a Quaresma termina no Sábado Santo, antes da Missa da Vigília Pascal. (É curioso observar que a própria Missa da Vigília, no rito antigo, indica essa mudança de um tempo para o outro, pois o sacerdote começa a celebração com paramentos roxos e termina com paramentos brancos.)
Uma explicação para a mudança? O que certamente a Igreja quis realçar com esse “deslocamento” do Sábado para a Quinta-feira Santa é a importância do Tríduo Pascal, como uma espécie de tempo à parte dentro do próprio período de austeridade quaresmal. Mais do que isso, estes três dias em que se celebram a Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor constituem como que o coração do qual promana todo o restante do ano. A Quaresma culmina justamente no Tríduo santo, que nos conduz pela mão até o tempo da Páscoa.
O Tríduo Pascal constitui como que o coração do qual promana todo o restante do ano litúrgico.
Há quem busque a resposta para a controvérsia no número exato de 40 dias para demarcar a Quaresma. Mas aí a controvérsia só piora, pois, matematicamente, contando também os domingos, o 40.º dia da Quaresma é o Domingo de Ramos — de modo que ficaria de fora a Semana Santa. Uma solução seria começar a contar a partir do 1.º Domingo da Quaresma, com o que nossa contagem terminaria exatamente na Quinta-feira Santa, opção que também tem o seu sentido, já que as práticas penitenciais da Quaresma começavam, em alguns tempos e lugares, justamente neste dia. Também seria possível contar a partir da Quarta-feira de Cinzas e descontar os domingos, e assim o nosso esforço terminaria… no Sábado Santo.
A verdade é que o número 40, aqui, tem um sentido mais simbólico que literal. Ele faz alusão ao deserto, aos dias que Jesus passou lá em jejum e aos anos que o povo de Israel passou no mesmo lugar. É a eles que nos unimos quando nos penitenciamos na Quaresma.
Para a pergunta que parece persistir, portanto, é preciso dizer simplesmente que a resposta varia de acordo com o Missal adotado, em função do rito de que se participe. Não está errado nem quem diz que a Quaresma vai até a Quinta-feira Santa nem quem diz que vai até o Sábado Santo. Só precisamos tomar o cuidado de não “desprezar” sem mais uma das respostas, pois, como escreveu o Papa emérito Bento XVI na Carta Apostólica Summorum Pontificum:
O Missal Romano promulgado por Paulo VI é a expressão ordinária da lex orandi (“norma de oração”) da Igreja Católica de rito latino. Contudo, o Missal Romano promulgado por S. Pio V e reeditado pelo Beato João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma lex orandi e deve gozar da devida honra pelo seu uso venerável e antigo (art. 1).
Controvérsias à parte, o fato é que as pessoas fazem essa pergunta pensando principalmente nas penitências a que se propuseram no início do período quaresmal. Por isso, a questão não é ociosa. É preciso saber, afinal, até quando se penitenciar.
Bom, para essa pergunta a resposta é bem mais simples. Mesmo que a Quaresma termine na Quinta-feira Santa, seria muitíssimo inapropriado cessar as penitências e abandonar neste dia o espírito de mortificação com que se viveram todos os dias da Quaresma. É a mesma conclusão a que chegaram os Padres do Concílio Vaticano II, antes mesmo de a reforma de Paulo VI “mudar” o fim da Quaresma, por assim dizer:
Mantenha-se religiosamente o jejum pascal, que se deve observar em toda a parte na Sexta-feira da Paixão e Morte do Senhor e, se oportuno, estender-se também ao Sábado Santo, para que os fiéis possam chegar à alegria da Ressurreição do Senhor com elevação e largueza de espírito (Sacrosanctum Concilium, n. 110).
Ou seja, para nós, católicos, a Quaresma e o espírito de penitência que a acompanha só devem cessar de fato na noite do Sábado Santo. Mais do que uma questão de datas e nomenclaturas, é uma questão de coerência. Não faz sentido preparar-se com afinco ao longo de todo um tempo, justamente para celebrar a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, e “pisar na jaca” nos dias em que celebramos esses mistérios. É como comer o bolo de casamento antes de a festa começar.
Sobre o jejum, a propósito, foi o próprio Senhor quem usou a imagem de um casamento para explicar o quando e o porquê de seus discípulos se mortificarem: “Virão dias em que lhes será tirado o esposo; então jejuarão nesses dias” (Lc 5, 35). Pois bem, em que momento fica mais evidente a ausência do Esposo, senão nos dias em que recordamos os fatídicos eventos da Paixão? Se Jesus não nos foi tirado quando preso, morto e sepultado, quando é que isso aconteceu? Como poderíamos, então, comer e beber tranquilos justamente nos dias em que a liturgia da Igreja nos põe diante dos olhos os mistérios para os quais nos preparamos ao longo da Quaresma?
Vale a pena lembrar que uma coisa são as penitências a que nós nos propomos e outra são as que a Igreja nos impõe como obrigatórias. As primeiras são livremente “pactuadas” entre nós e Deus; as segundas, porém, devem ser vividas por todos os fiéis católicos, sob pena de pecado mortal. Isso significa que, para um católico, deixar de comer carne às sextas-feiras e jejuar na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa não são “opções”; trata-se apenas do mínimo de penitência que a Igreja exige de todos os seus filhos. Neste texto, estamos falando de outras penitências, mortificações a mais que cada um de nós escolhe generosamente fazer tendo em vista a própria purificação e crescimento na vida da graça.
Para que essas observâncias externas “funcionem”, no entanto, é preciso que as cumpramos não apenas com as mãos ou os lábios, mas com o coração. Só assim, fazendo nossas penitências com amor — e não com a pressa de quem quer se ver livre de um fardo —, poderemos ter uma Quaresma realmente santa e agradável a Deus. Até o fim.